Vinicius de Moraes
Em dois tentos simples, Jorge Amado acaba de escrever o que para mim é o melhor romance e a melhor novela da literatura brasileira: “Gabriela, Cravo e Canela” e “A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua”, publicada, esta, no número de junho da revista Senhor. Para tirar teima, ainda andei pegando esses últimos dias “Dom Casmurro” e “Quincas Borba” e uma série de contos do velho Machado; um mais fino estilista, sem dúvida, o escritor carioca, com a graça da sua silogística cinzenta e a sua paciente ordenação das personagens no tempo e espaço. O baiano, apesar do apuro que, pouco a pouco, está também atingindo, ainda se espoja no sumo de sua linguagem, ainda brinca em serviço, como se diz. E felizmente o faz! Pois se é verdadeiro dizer que o estilo é o homem, temos que Machado é mais estilo que homem, e Jorge Amado mais homem que estilo. E esta é, em última instância, pelo menos a meu ver, a classe de escritores que realmente fecundam a língua, que realmente libertam as personagens da sua própria teia psicológica e as fazem saltar, vivas e ardentes, para o lado de cá do livro.
Não somos um país de grandes prosadores. Alguns dos melhores são, a meu ver, poetas como Bandeira e Drummond ou poetas a ser, como Rubem Braga, que é para mim, neste momento — em que pese a freqüente displicência que a obrigação da crônica diária lhe traz — o melhor prosador do idioma. Digo prosa, entenda-se bem. Grandes romancistas nós os temos, alguns aliando à vocação qualidades ímpares de estilo; e, infelizmente, nesta linha o maior deles, na minha opinião, morreu: Graciliano Ramos. Mas a maioria dos que procuram narrar com estilo, nas pegadas do velho Machado, ou por imperativo de sua própria condição de escritor, secaram a língua, fizeram dela não um saboroso pão, cheiroso e de substância; produziram finos biscoitos quebradiços que se prova uma vez com delícia, mas cuja repetição resulta enjoativa. A esses prefiro francamente a incúria estilística de um José Lins, de um Jorge Amado da primeira fase, de um Otávio de Faria, que se prejudica o prazer sibarita da leitura de sandálias, em nada lhes subtrai a capacidade de criar mundos de romance onde as personagens “vivem”.
Eu acho francamente belo o crescimento de um escritor como Jorge Amado, que vem desde um livro cheio de defeitos como “O País do Carnaval” até essa obra-prima que é “A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua”. Um crescimento verdadeiro como a vida, que vem de baixo para cima e sem se recusar às torpitudes; não um crescimento decorativo de araucária, mas de árvore que dá fronde e que dá frutos de polpa, que dá parasitas e dá passarinho: uma gorda e resinosa mangueira. E que melhor comparação, para o deleite da leitura desse baiano da peste, que o comer mangas, os dentes mordendo fundo a carne da fruta, a terebintina escorrendo pelo queixo no seu amarelo pungente, a gulodice de enxugar o caroço até o fim...
Saí da leitura dessa extraordinária novela, eu que andava no maior fastio de literatura, com a mesma sensação que tive, e que nunca mais se repetiu, ao ler os grandes romances e novelas dos mestres russos do século XIX, Pushkin, Dostoievski, Tolstoi, Gogol especialmente. Uma sensação de bem-estar físico e espiritual como só dão os prazeres do copo e da mesa, quando se está com sede ou fome, e os da cama quando se ama. Ela representa dentro da novelística brasileira, onde já há cimos consideráveis, um cume máximo. Um cume que todos os escritores jovens devem ter em mira numa sadia inveja e num saudável desejo de ultrapassá-lo. E tanto pior se o não fizerem. (Em “Última Hora”, Rio, 1959).