Este espaço foi criado para trocar ideias e atividades da área de Lingua e Literatura, compartilhando com os colegas experiências vividas ao longo da minha profissão.

Língua

Gosto de sentir a minha lígua roçar
A língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar
A criar confusões de prosódias
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesias está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade (...)
(Caetano Veloso)

terça-feira, 9 de novembro de 2010

“A MORTE E A MORTE DE QUINCAS BERRO DÁGUA”

Por:

Vinicius de Moraes

Em dois tentos simples, Jorge Amado acaba de escrever o que para mim é o melhor romance e a melhor novela da literatura brasileira: “Gabriela, Cravo e Canela” e “A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua”, publicada, esta, no número de junho da revista Senhor. Para tirar teima, ainda andei pegando esses últimos dias “Dom Casmurro” e “Quincas Borba” e uma série de contos do velho Machado; um mais fino estilista, sem dúvida, o escritor carioca, com a graça da sua silogística cinzenta e a sua pa­ciente ordenação das personagens no tempo e espaço. O baiano, apesar do apuro que, pouco a pouco, está também atingindo, ainda se espoja no sumo de sua linguagem, ainda brinca em serviço, como se diz. E felizmente o faz! Pois se é verdadeiro dizer que o estilo é o homem, temos que Machado é mais estilo que homem, e Jorge Amado mais homem que estilo. E esta é, em última instância, pelo menos a meu ver, a classe de escritores que realmente fecundam a língua, que realmente libertam as personagens da sua própria teia psicológica e as fazem saltar, vivas e ardentes, para o lado de cá do livro.

Não somos um país de grandes prosadores. Alguns dos melhores são, a meu ver, poetas como Bandeira e Drummond ou poetas a ser, como Rubem Braga, que é para mim, neste momento — em que pese a freqüente displicência que a obrigação da crônica diária lhe traz — o melhor prosador do idioma. Digo prosa, entenda-se bem. Grandes romancistas nós os temos, alguns aliando à vocação qualidades ímpares de estilo; e, infelizmente, nesta linha o maior deles, na minha opinião, morreu: Graciliano Ramos. Mas a maioria dos que procuram narrar com estilo, nas pegadas do velho Machado, ou por imperativo de sua própria condição de escritor, secaram a língua, fizeram dela não um saboroso pão, cheiroso e de substância; produziram finos biscoitos quebradiços que se prova uma vez com delícia, mas cuja repetição resulta enjoativa. A esses prefiro francamente a in­cúria estilística de um José Lins, de um Jorge Amado da primeira fase, de um Otávio de Faria, que se prejudica o prazer sibarita da leitura de sandálias, em nada lhes subtrai a capacidade de criar mundos de romance onde as personagens “vivem”.

Eu acho francamente belo o crescimento de um escritor como Jorge Amado, que vem desde um livro cheio de defeitos como “O País do Carnaval” até essa obra-prima que é “A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua”. Um crescimento verdadeiro como a vida, que vem de baixo para cima e sem se recusar às torpitudes; não um crescimento decorativo de araucária, mas de árvore que dá fronde e que dá frutos de polpa, que dá parasitas e dá passarinho: uma gorda e resinosa mangueira. E que melhor comparação, para o deleite da leitura desse baiano da peste, que o comer mangas, os dentes mordendo fundo a carne da fruta, a terebintina escorrendo pelo queixo no seu amarelo pungente, a gulodice de enxugar o caroço até o fim...

Saí da leitura dessa extraordinária novela, eu que andava no maior fastio de literatura, com a mesma sensação que tive, e que nunca mais se repetiu, ao ler os grandes romances e novelas dos mestres russos do século XIX, Pushkin, Dostoievski, Tolstoi, Gogol especialmente. Uma sensação de bem-estar físico e espiritual como só dão os prazeres do copo e da mesa, quando se está com sede ou fome, e os da cama quando se ama. Ela representa dentro da novelística brasileira, onde já há cimos consideráveis, um cume máximo. Um cume que todos os escritores jovens de­vem ter em mira numa sadia inveja e num saudável desejo de ultrapassá-lo. E tanto pior se o não fizerem. (Em “Última Hora”, Rio, 1959).